8 de junho de 2011

Preview do próximo conto

A monotonia ainda imperava dentro daquela sala fria do fórum criminal.

O magistrado, um baixinho de cabelo pintado com ar prepotente mexia em seus papéis fazendo hora em tom sombrio e ferrenho. Pelos seus olhares, algo de muito ruim estava pra acontecer.

O promotor, sujeito de fina estirpe e meticuloso buscava esconder seu aparente nervosismo lendo uma dessas revistas semanais enquanto piscava sem parar o seu olho esquerdo, o naturalmente caído. Havia passado a noite em claro estudando o caso, seu cabelo bagunçado e sua sede desmedida denunciavam sua situação. Já tinha bebido o terceiro copo de água e o pé direito, frenético, marcava o tempo em ritmo dobrado.

Os bancos ainda gelados começavam a esquentar conforme os coadjuvantes iam se sentando. Neles, rabiscos e riscos de unha depreciavam o já desbotado verniz da pompa judiciária do Estado. Poder sucateado.

No júri pessoas ordinárias. Ninguém que contrastasse com o beje das paredes exceto o senhor bigodudo com cara de pedófilo, que durante os minutos que sucederam o início do julgamento coçava a sua virilha constantemente por dentro do bolso de sua calça. Não contente, assuava seu nariz com um lenço de pano que tirava de dentro do paletó de lã xadrez. Apesar da panca de grã-fino, o filho da puta tinha cara de açougueiro. Tinha sido plantado. Mas por quem?

Na platéia o público que se dispôs em acompanhar de perto o desfecho do crime que chocou as donas de casa do bairro do Ipiranga. Advogados, estagiários de direito, curiosos, desocupados e obviamente a imprensa, com celulares a postos para tuitar todo o trâmite do julgamento nos cento e quarenta caralhos permitidos. Esses sim os sensacionalistas de merda.

Entre os demais, o padre testemunha do caso. Certamente morrendo de remorso em ter delatado segredos do confessionário. Um terço, empunhado, rodava sem parar em sua mão esquerda, e seus lábios, trêmulos, bendiziam orações, pedindo que a justiça divina fosse feita, já que a dos homens, pelo que parecia, iria faltar.

Três fileiras para trás do padre, no extremo canto direito do salão estava sentado Sidney Durval, o Sid, se cagando, obviamente. Até então havia passado despercebido por toda a investigação. Somente Tavares, o investigador assistente, como se verá adiante, suspeitava dele por sua aparição numa foto do American Bar na noite do crime, mas essa é uma história bem mais complexa. Tavares também estava presente, mas no banco dos fundos, na outra ponta do salão.

Pela cara dos funcionários do fórum seria mais um julgamento daqueles. Suas becas com marcas antigas de suor mostravam o quanto aquela sala poderia ficar quente em dias de verão. Mas não em dias como aquele, frio, cinza e tipicamente paulistano.

A sala já estava quase cheia e antes que começasse a cheirar o acúmulo de gente, entre risos e unhas roídas, a campainha tocou. O silêncio finalmente deu as caras, o réu iria entrar.

Todos de pé e ele, algemado e acompanhado por dois guardas, vestindo seu macacão mostarda, caminhava para o canto que lhe pertencia.

Como que em coreografia, o júri engoliu a seco fitando o tamanho do homem que fez o chão tremer a cada passo. Uma das senhoras que representavam o povo fez disfarçadamente o sinal da cruz.

Uma ou outra estagiária mais assanhada espantava-se com a sua beleza em contraste com as barbáries por ele cometidas. Traços firmes, sobrancelha grossa, cabelo e barbas bem aparados.

O padre sentiu uma leve arritmia, Sid e Tavares escondiam-se de sua visão, o promotor, com seu olho-e-meio abertos o mirava nas retinas, o juiz, fingindo descaso, continuava afundado em seus papéis.

O "Dino Manjuba" estava ali. O julgamento iria começar.

Mas sequer antes de uma primeira palavra iniciando-se os trâmites da sessão, ouviu-se, da primeira fileira do lado esquerdo, bem em frente ao padre e aos berros:

- "Tu vai se fuder, seu gigolô filho de uma puta! Vão te enrabar na prisão, seu bicha de merda!"

Era Paulinha Lordose disfarçada com uma peruca ruiva, quase vermelha, jaqueta jeans e com os pés dentro daquelas botas cinzas e feias que sobem até embaixo dos joelhos.

Paulinha Lordose (Paula Soares de Arruda, 22) trabalhava como secretária de um dentista no bairro do jabaquara e foi a terceira de três irmãs. Vivia de seu pequeno salário e golpes nos clientes do consultório e em seu patrão. Revés a toda a sua família (crentes) desvirtuou-se desde cedo, andando com a bandidagem mirim da vila onde cresceu.

Após o falecimento de sua mãe, seu pai se apoiou nos dogmas da igreja para criar as filhas. Mas de todas, ela foi a única que não se adaptou à rigidez da saia e cabelos compridos. Deu pela primeira vez quase antes de menstruar e dizia que esse negócio de castidade não era pra ela, não. Gostava mesmo é de ver o pau comer. Literalmente. Chegou a ser aviãozinho da favela de perto de onde morava e caiu no vício. Trocou sexo por droga. Mas graças ao esforço de seu pai, que trabalhando como vigia numa escola tinha um grande desconto na mensalidade, conseguiu ao menos uma educação razoável a filha que além da pouca inteligência, possuía a melhor bunda da zona leste – obviamente beneficiada pela gritante lordose. Uma benção de Deus, segundo ela.

Mas voltando ao julgamento, entre os berros Dino Manjuba, contrário aos demais presentes, assustados, olhou para frente reconhecendo a explosão e a voz de quem gritava, e sorriu. Era a sua gatinha, como a chamava nos bons tempos da relação.

Já a moça, ensandecida, não acatou a ordem de silêncio deferida pelo juiz, foi enxotada para fora do salão nobre daquele fórum pelos guardas que aproveitaram-se de sua voluptualidade enquanto que a seguravam pelas costas, e a imprensa, agora com repórteres munidos de câmeras e ávidos por qualquer informação do que acontecia dentro da sala, logo a interrogou.

Sob um chuvisco fino, lateral e cabelos avermelhados voando, ela não poderia ter dito tanta merda para os repórteres.

Quase me esqueci de contar da advogada do réu, Jussara Pupo, cinquentona brega e encalhada. Foi ela quem pediu a imediata remoção de Paulinha Lordose de dentro da sala. Sabia de seu passado com o réu e o quanto a sua presença poderia influenciar o julgamento. Jussara (Jussara Miguez Pupo, 52) era uma daquelas advogadas mal vestidas e de cabelo ressecado que fazem de tudo pela profissão, principalmente tratando-se de um cliente como o Dino Manjuba. Aí fazia tudo e mais um pouco, se é que me entendem.

Para um puto como Dino Majuba, ela era um alvo fácil. Algumas conversas olho no olho e Jussara estava matando para provar a inocência de seu cliente. A pobre coitada chorava por uma rola!

Mas para entender o porquê daquele circo acontecer naquela manhã azeda de outono, é preciso voltar dois anos antes, quando toda a merda começou.


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