1 de abril de 2011

Vândeu e De Marco

De Marco era cafona ao começar pelo seu nome. Sempre usava uma calça branca réplica barata de couro de cobra, uma bota country de bico fino e uma camisa verde musgo com chifres de touro desenhado nas costas.

Às noites se aboletava nas mesas dos bares e perdia-se em doses de conhaque e nas pernas das moças no vai-e-vem da rampa de seu escritório, a Rua Augusta.

Era sócio e amigo de Vândeu, uma peça oriunda do sul do país, com sotaque dos pampas e gosto duvidoso para as vestimentas, assim como o outro.

Sobreviviam de bicos, ou às vezes de chutes nos irremediáveis playboys que faziam arruaça em seus carros na parte baixa daquela artéria que ligava o alto ao baixo de São Paulo.

Eram seguranças das boates onde as moças vendiam seus carinhos por preço acessível aos mais pobres. Algumas eram gordas, feias, doentes ou magras demais. Enquanto que as mais bonitinhas eram regalos aos mais afortunados ou seus patrões. Todas, sem exceção, ignoravam a dupla e comentavam em tom de desabafo o nojo do bigode castanho claro ralo com fios mais compridos que De Marco ostentava embaixo de seu nariz.

Mesmo assim, em tempo de vacas gordas – literalmente - os dois atendiam duas ou três boates por noite, o que lhes rendia o pão, a cerveja e o lazer de cada dia. Afinal, quanto mais barato o programa, mais cara a confusão.


De Marco se derretia por Ana Mariana, sua vizinha, uma morena de olhos leves que após terminar com seu namorado, um coroa cabeludo que vendia antiquidades em uma Marajó marrom, vivia sozinha e recomeçava a vida à só.

Ana Mariana era manicure e atendia num salão de beleza ao lado do prédio onde moravam. Geralmente, quando De Marco estava chegando do serviço, ela estava saindo para trabalhar, e cumprimentavam-se com olhares ou então algum som indecifrável vindo da boca (do estômago), no caso dele.

De Marco fazia questão de aparar seu bigode e seu cabelo no salão onde Ana Mariana trabalhava. Mesmo que tal luxo saísse de seu orçamento. Assim podia olhar para as madeixas e trejeitos da moça pelo espelho enquanto aparentava prestar atenção numa revista de celebridades. E ela, fingia não perceber.

Apesar do estirpe esquisito, Ana Mariana não o considerava de todo o mal, pensava que com um pouco de bom gosto e um toque feminino ele ficaria até razoável.

Já Vândeu, tirando sua paixão pelo colorado, não se emocionava tão facilmente, mas seu coração fervia de raiva, principalmente diante de piadas bairristas e preconceituosas sobre seus conterrâneos que seus chefes lhe deferiam, zombando dele para as camélias recém-chegadas. Ele ficava puto e sobrava à racionalidade e frieza de De Marco abrandar Vândeu e seu ímpeto explosivo.

Certa vez, quando já era noite, Ana Mariana voltava de um atendimento domiciliar passando pela Rua Augusta. Vinha dos Jardins, onde acabara de embelezar vinte unhas e arrancar um bocado de cutículas de uma madame gente-boa. Caminhava e perdia-se em pensamentos ritmados pelos estalos de seu sapato no asfalto sujo, mas colorido pelos chicletes secos e bitucas no chão ali deixados pelos indie rockers e alternates que frequentavam aquela região. Pensava na vida, na sorte em não acabar como as moças que nas esquinas trabalhavam e sorria, pouco, mas sorria.

Algumas centenas de metros e passos depois, como um susto, deparou-se com seu vizinho - naquele dia de camisa amarela e calça escura - segurando com força pelo colarinho um bêbado e expulsando-o de dentro de uma boate de fachada com luzes neon verdes e vermelhas que simulavam o balance de pernas de uma Moulin Rouge comedora de acarajé.

Ela olhou para o chão, fingiu não ter o reconhecido e reformulou todas as impressões que tinha sobre o seu vizinho admirador.

Desfez o sorriso e naquela hora, e talvez naquela noite, entristeceu. Andava sonhando, na inocência e devaneios de menina-mulher, um dia, conhecer o rosto por detrás daquele bigode.

*****

Foram três semanas sem que De Marco visse Ana Mariana. Lapso que o fez questionar se ela havia se mudado. Seu porteiro, com um sorriso de canto lhe lançou um olhar malicioso dizendo que a moça ainda morava lá.

Já Vândeu retornava do sul após duas semanas de folga. Voltava relaxado, mas a loucura da cidade-zona fez o seu estômago embrulhar quando, ainda dentro do ônibus, estava preso na marginal alagada, onde chovia brutalmente naquela manhã. Ia começar tudo de novo.

Como de costume, tomavam cerveja no boteco e preparavam-se para mais uma noite de trabalho e De Marco, nessas conversas filosóficas cercadas por azulejos claros e luzes frias, perguntou ao amigo se ele já tinha se apaixonado.

Vândeu, impressionado com a pergunta, mas surpreendendo com a própria resposta, disse:

- Quem nunca conheceu uma guria que lhe tirou o sono que atire a primeira pedra.

Era justamente o que acontecia. Ana Mariana e seu sumiço faziam De Marco fritar em sua cama enquanto tentava dormir. Ele a esperava na portaria do prédio por volta da hora dela passar; procurava enxergar através do olho mágico a imagem distorcida dela saindo do elevador, mas tudo em vão. O acaso parecia ter se esquecido deles. E ela também.

Então, angustiado, pensou em encontrá-la no salão de beleza onde trabalhava. Precisava desatar o nó do estômago, livrar o imã das idéias. Mas não havia pretexto plausível para que ele fosse em seu local de trabalho, e àquela altura, depilar os poucos pelos que tinha no peito não soaria masculino o bastante para impressioná-la, pensou.

Primeiro saiu de sua quitinete, em passos largos pela calçada fitou o cabeleireiro por fora, mas não conseguiu vê-la. Uma senhora gorda de toca rosa e vestida numa capa branca lhe dava as costas e tapava a sua visão por completo. Apreensivo, mas sem alternativas, entrou no salão sem saber o que faria.

A decepção lhe assombrou subitamente: por detrás da senhora gorda que fazia as unhas, não era Ana Mariana trabalhando.

Mudo, não soube responder à recepcionista o que ele pretendia aparar daquela vez. E olhando anuviado para aquela manicure desconhecida fez a atendente que o recepcionava procurar com os olhos os dedos gorduchos do pé da senhora que entre pinceladas ganhavam ares franceses.

De repente, saindo de uma portinhola, Ana Mariana surgiu, e frente a frente, lhe faltou o ar para desajeitada cumprimentá-lo tremendo e com a voz falha. Em seguida, cerrou seu olhar e sentou já esquecida do que iria fazer.

De Marco, branco, já que o frio na sua barriga o possuía por completo e a tremedeira começava a lhe chacoalhar das canelas adiante, olhou para a recepcionista e falou: vou aparar o bigode.

O choque e a tensão dos dois foi visível para a testemunha, que com o mesmo olhar e sorriso do porteiro do prédio de Ana Mariana foi preparar a ficha para o cliente que parecia querer desaparecer daquele espaço.

A senhora avantajada, ignorando por completo a sinergia que ali passava, olhou para cima e, gabando-se das unhas novas que abiscoitava, voltou rapidamente as retinas às novas cores de seus pés, imaginando, provavelmente, seu desfile por cima das sandálias que havia comprado horas antes.

De Marco sentou na cadeira giratória e pelo espelho, dessa vez sem ser discreto, olhava para Ana Mariana buscando contato. Só parou quando o cabeleireiro, um paraíba enjoado que usava sandália de couro e calça capri, lhe fez mirar o teto para com a navalha arrancar o seu bigode disforme.

Então ela, sem deixar que fosse flagrada, começou a fitá-lo.

Quando De Marco pôde novamente olhar o espelho, havia mudado por completo, e ela, conhecendo o rosto por detrás do bigode e sentindo o que a sua presença havia causado com sua compostura de mulher firme, voltava a se interessar pelo vizinho, agora, nem tão esquisito assim.

Foi mais ou menos aí, que a coisa toda começou.

*****

Após um banho rápido, pois naquele dia havia trabalhado até tarde, Ana Mariana, enrolada na toalha, fechou as cortinas verdes frente à janela de seu quarto e passou a se vestir para o encontro com o seu vizinho.

Sim, De Marco, após a inusitada visita ao salão, diante de lábios trêmulos – e sem bigodes – convidou-a, num desconcertante tom adolescente, para um encontro. O primeiro deles.

A moça, portanto, para não dar bandeira de sua afobação, ligou a televisão e buscava silenciar o rangido do abre e fecha das portas de seus armários e gavetas, enquanto jogava algumas das inúmeras possibilidades por cima da cama.

A simplicidade de um bar àquela altura tornava-se um martírio para ela, que não conseguia discernir seus humores e o seu corpo para escolher a roupa que lhe tornava desejável. Ainda mais sem saber para onde seria levada, outro motivo preocupante.

Foram vestidos, saias, blusas e sapatos trocados. Cabelo preso, solto, maquiagem acentuada, mas pouco carregada. A calcinha e sutiã eram pretos, sem renda. Esborrifou um perfume que havia ganhado de aniversário atrás do cabelo, mas sem exageros. No fundo tinha medo dele pensar ser ela mais uma mulher da baixa Augusta. Hipótese que ele descartava.

Não sabia se fazia o tipo menina, mulher bem resolvida ou carente. Se iria se abrir ou se deixar levar aos poucos. Imaginava mil possibilidades, situações e conversas. Se pegou olhando nos olhos dele.

Optando pelo certo, vestiu-se e buscou ser ela mesma. Um vestido marrom, levemente cintado, ombros de fora e cabelo preso. Nada vulgar, mas sabia explorar os pontos altos de seu corpo. A harmonia de seus ombros com a sua nuca deixavam os homens com a boca seca. Era o que já haviam dito a ela. Mais de uma vez.

Queria aproveitar a oportunidade para de fato conhecer o seu vizinho. Diferente da superficialidade – que diz bastante coisa – em ouvir os barulhos abafados do cotidiano quando ruídos atravessavam a parede que dividiam suas quitinetes.

Estranho é o paradoxo proximidade versus distância de morar num prédio de apartamentos em São Paulo. No fundo sabia tão pouco sobre seu vizinho, mesmo com ele dormindo ali, do outro lado do concreto. Será que ele saía com putas? Afinal, ele trabalhava nas casas neon cuidando do entra e sai dos fregueses. Ao menos da porta. Até hoje ela nunca tinha escutado nada.

De Marco, por sua vez, estava inquieto. De meias, para que ela não ouvisse o toc-toc dos sapatos, andava em círculos pela sua minúscula sala sem parar. A ansiedade lhe incomodava.

Nervoso, pois não imaginava o que ela pensava dele. Perguntou-se como seria a reação dela ao saber os lugares em que trabalhava? Teria ele aparentado nervosismo demais ao convidá-la para sair? Surtava em alta rotação.

Possuía uma baixa auto-estima, o que lhe deixava mais inseguro e com desconforto estomacal. Naqueles instantes sentiu-se pelado pela falta de seu bigode. Talvez quisesse se esconder atrás dele. Começou a pensar ter sido uma má idéia o convite, mas não havia como retroceder. Maldita hora em que ela foi ser a sua vizinha.

Chegava a hora de vestir os sapatos, mordiscar um chiclete e tocar a campainha ao lado. Um último copo de água, que antes tivesse algumas colheradas de açúcar, pegou a carteira e bateu a porta, mostrando que havia saído de casa. Havia esperado cinco minutos além do combinado.

A essa altura, Ana Mariana sentada em sua cama, já pronta, assistia mordendo os dedos, mas sem prestar atenção a novela, e sabia que sua campainha tocaria em segundos. E foi o que aconteceu.


A moça pegou sua bolsa, balançou sua chave para que ele ouvisse a aproximação e abriu a porta. Mirou De Marco, de camisa menos extravagante, calça escura e bota semi-country, assim definida por ela. Estava até elegante, pensou.

Sem dizer nada, e com um sorriso bem sem graça, o beijou no rosto, passou a chave no trinco e dirigiu-se, acompanhado pelo galante que pôs as mãos em suas costas, até o elevador.

E foi justamente quando ele pôde desviar seu olhar dos dela e fitar a beleza de seus ombros desnudos. Subitamente, sentiu-se acanhado ao perceber o quanto era ela bonita. Sentiu um frio na espinha e travou. O embrulho na garganta acompanhado de um inconveniente bloqueio mental que só os apaixonados sentem lhe tomou o ar e as idéias. E o silêncio, sadista, se intitulou senhor enquanto esperavam o elevador.

Foi então que De Marco, sentindo o desconforto e a enxurrada de adrenalina que ele tanto odiava, quebrou o gelo da seguinte forma...

*****

"Conheço um bar ótimo!" E emudeceu.

Um ou dois andares depois, Ana Mariana, replicou:

"E você vai me levar lá?"

Ele fez que sim com a cabeça arregalando os olhos, como quem havia esquecido o essencial. Então se olharam e embaraçados riram daquela situação patética, derretendo parte da neve que havia dentro do elevador.

Desnecessário dizer que quando saíram do prédio, o porteiro, eterno conhecedor da vida dos condôminos, lhes deu, sem que percebessem, uma olhadela malandra insinuando cafajestagem. Atributo da profissão.

Caminhavam pelas ruas do Cerqueira Cesar rumo ao bar escolhido por De Marco. E entre alguns mendigos e ruas sombrias, conversavam sobre o quanto aquele bairro era prático, fofocas de alguns moradores, pecados do síndico e falaram até da profissão de Ana Mariana.

Quando entraram no bar, a moça sentiu-se aliviada: um ambiente com meia-luz, tons amarelados, quentes, a parede era coberta por fotos de atores e músicos da época de ouro, havia um lustre central enferrujado, poucas mesas estavam ocupadas, havia um garçom que provavelmente ganhou várias de suas rugas e cabelos brancos ali trabalhando e um tecladista ruivo e sardento que tocava músicas nacionais pop com uma voz terrível.

Pediram por uma cerveja e De Marco, querendo se exibir fez questão de frisar ao senhor que os atendia o quão gelada gostaria que estivesse a sua garrafa. O garçom e a moça acharam tudo aquilo meio esquisito, mas tudo bem.

Continuaram entretidos e falaram de suas famílias, infância e voltaram a conversar sobre a necessidade de esterilizar alicates para não infeccionar cutículas, até que, mudando o rumo, a prosa virou à De Marco.

"Sou segurança de boates." Disse.

"Quais boates?" Perguntou, como se já não soubesse.

O ritmo da conversa foi quebrado e o descompasso realçado quando a única coisa que se pôde ouvir foi o tecladista gritar: "ok, você venceu, batata frita", enfatizando, precariamente, a voz de Evandro Mesquita.

"Trabalho nas boates da Rua Augusta. Naquelas onde as moças se vendem." Ao dizer isso, sentiu vergonha. Mas olhou-a nos olhos e lhe disse também que não tinha nenhuma relação com a cafetinagem.

Ela acreditou.

Até aquele momento, Ana Mariana conduziu o encontro. Mas depois disso, quando menos esperava, passou a ser guiada por De Marco, que controlado pela primeira vez na noite assumia as rédeas de toda a situação.

O músico uivava "você não soube me amar", Ana Mariana se perdia em nostalgia e De Marco, surpreso, avistava Vândeu, seu parceiro, adentrando no bar com um amigo.

Ana Mariana, vendo o interesse do seu vizinho por quem chegava ao bar ficou intrigada e quebrou o pescoço para ver de quem se tratava.

"É meu sócio." Disse De Marco, apontando para Vândeu.

Os dois sentaram numa mesa de canto sem avistar De Marco, que primeiramente estranhou o pedido de ambos – duas caipirinhas frutas - e então o amigo de Vândeu: um moreno, corpo atlético, barba, cabelo e roupas impecáveis. Até o seu sapato combinava com o cinto. Um ar nebuloso e delicado instalou-se ali.

Havia algo de estranho naquela mesa e Ana Mariana percebeu que De Marco queimava os seus neurônios para entender o que faltava ou havia em excesso. E ela sensível, como só as mulheres são, entendeu rapidamente do que se tratava.

"Faz tempo que você trabalha com esse cara?" Perguntou.

"Trabalhamos juntos faz três anos, além de sócio ele é meu melhor amigo, me conta tudo."

Ana Mariana, com olhos brilhantes de menina levada, riu maliciosamente por dentro.

Passado o episódio, De Marco ficou de cumprimentar seu sócio em outro momento, talvez quando estivessem indo embora ou então quando fossem ao banheiro. Na verdade, preferia não ter de passar por aquilo. Não queria se expor e apresentar, logo no primeiro encontro, a moça com quem saía e era apaixonado.

Em determinado momento, lá pela terceira garrafa de cerveja, De Marco tomou coragem e encostou, como quem não percebesse, seus dedos na mão de Ana Mariana, que estava propositalmente caída para o seu lado. No começo ela pensou em tirar, depois relaxou e deixou que ele, devagarzinho, pegasse em suas mãos. O que ele fez olhando para o tecladista, que cantava nessa hora uma canção de Ivan Lins.

Uma garrafa de cerveja depois, Ana Mariana, já alta, deixou ser levada pelo seus instintos e o puxou para perto de seu rosto. Sentiu o seu cheiro, o seduziu numa dança entre os olhos e esperou ser beijada. Agradeceu a Deus por ele ter raspado o bigode.

De Marco desacreditou tudo aquilo, e naquele instante, desritimado, e carregado de uma energia que há muito não sentia, pensou a sua vida valer a pena.

*****

No dia seguinte Vândeu e De Marco trabalhavam como se seus pés não tocassem o chão. Usavam de pouca agressividade e até os fregueses arruaceiros estranhavam a gentileza com a qual eram expelidos de dentro das boates.

De Marco, alheio ao mundo, só pensava em Ana Mariana. Lembrava, lembrava e lembrava. Sorria, sorria e sorria.

Já Vândeu, sem que De Marco percebesse, também desfrutava dessa magia se pegando sorrindo e fantasiando enquanto tocava a vida e seu segredo da forma que dava.

Naquele dia, até as meretrizes, velhacas da vida, mas que ainda sonhavam em encontrar seus príncipes compartilharam daquela energia e no meio da cólera de suas atividades reviveram um pingo da esperança já esquecida.


Eram os "efeitos do amor" como brincavam soltando frases prontas quando fregueses mais carentes quebravam as suas couraças com olhares afetuosos. Naquela vida, sonhar era necessário.

Ana Mariana, por sua vez, pintava as unhas das madames com delicadeza, usando de suavidade para colorir não só a ponta dos dedos, mas também a estima das freguesas que buscavam o que ela mais tinha naquele momento: felicidade.

Esse clima harmonioso onde as cores e cheiros eram diferentes foi quebrado somente quando De Marco, voltando para a sua casa, entendeu que o separava a sua intimidade da de Ana Mariana era uma fina parede de concreto.

Em casa mudou os seus hábitos. Ligou a televisão, andava na ponta dos dedos, sentiu-se inseguro sobre seus gostos musicais. Parou de gritar seus gazes por ambas as vias. Tentou não fazer, mas sem controle afinou os seus ouvidos para escutar a movimentação de Ana Mariana, com quem ela conversaria no telefone, o que fazia acordada hora tarde da noite e cogitou se devia bater-lhe a porta e lhe desejar boa noite. Aquela proximidade, até então puramente física, o deixava maluco.

Agoniado, deixou sua quitinete, encostou a porta sem alarde e caminhando pelas ruas do centro, já de madrugada, foi ao prédio onde Vândeu morava. Precisava conversar com seu amigo.

Vândeu abriu a sua porta. Estava sozinho, usava uma samba-canção vermelha de seda e um hobbie azul marinho, tomava vinho numa taça e ouvia músicas de cantoras dos anos 80. Certamente não entendia nada que falavam na letra. Emancipava um bigode esquisito.

Apesar da amizade, De Marco havia conhecido a casa de Vândeu somente uma vez, e pelo que lembrava, era muito diferente daquilo que via: plantas e flores por todos os lados, decoração moderna, vasos decorativos e tapetes felpudos. Havia dedos e traços de mulher naqueles detalhes. Só podia.

De Marco foi logo perguntando qual mulher andava virando a cabeça de Vândeu.

Vândeu, desconcertado, largou seu copo, respirou fundo trazendo seus ombros para cima e depois para baixo e disse:

- De Marco, porra, eu sou gay!

Um silêncio imperou dentro daquele apartamento.

- Então aquele cara com quem você estava...

- Era meu namorado, o Lélio!

De Marco juntou o restante do quebra-cabeça e não hesitou:

- Então de cabeça de mulher você entende, certo?

Vândeu fez que sim e De Marco sentou no sofá aliviado, e pouco se importava com o que seu sócio fazia ou deixava de fazer; àquela altura, tinha problemas maiores para resolver.

Conversaram por uma boa parte da noite sobre seus namorados, e em sintonia perceberam que ambos estavam apaixonados por seus parceiros.

Enquanto isso, um pouco longe do clima rosa e grafite da conversa entre os sócios, Ana Mariana aguardava, com um pouco de ansiedade, a hora em que De Marco poderia bater a sua porta, para lhe desejar bom dia.

*****

Uma semana havia passado. De Marco, a cada dia perdia mais os seus pés do chão. Respirava, só falava e pensava em Ana Mariana.

Vândeu, um pouco mais casca-grossa que era, conseguia ao menos trabalhar. Pensava que sair do armário seria uma foda no meio de tanta gente escrota que o cercava. Mas no fundo, não se preocupava, sabia que ainda não tinha se afeminado o suficiente para dar na vista. E se desse, não se preocupava, era o melhor profissional no ramo.

De Marco e Ana Mariana haviam saído mais uma vez e a afinação entre os dois parecia estar próxima de um passo a mais, para o bem da ansiedade do homem, que obsessivo conseguia visualizar um filme de casamento com a sua vizinha.

Eis que numa calorosa tarde, antes do trabalho, De Marco foi ao banco e sacou todo o dinheiro que tinha. Não era muito, mas também não era pouco. Encheu um envelope e aguardou Ana Mariana sair de seu trabalho.

Ela deu as caras na rua sorrindo como sempre e cantarolando caminhava quando ouviu De Marco chamá-la. Estranhou, pois àquela hora teria ele que chegar na boate "La Belle de Jour" onde faria a segurança naquela noite.

Ele entregou o envelope a Ana Mariana.

"É pra você."

Ela abriu.

"Quero que você abra o seu próprio salão".

Ela sorriu. Talvez aquele momento fosse o que ela sempre quis. Uma prova de amor maior que a própria vida. Algo muito além de rosas. Doação jamais vista antes. Alguém em que se via nos olhos poemas e ouvia da boca as mais belas canções de amor já feitas.

Mas não, nem ela nem a vida quiseram assim.

Ana Mariana devolveu o pacote e deixou De Marco assistindo ela ir embora sem olhar pra trás, enquanto que o formidável balanço de seus ombros era apagado em lágrimas. E sozinha, respirando a liberdade, pensou no desequilíbrio explícito de De Marco. Se arrepiou, e olhando os prédios do Cerqueira Cesar, lembrou em tom vivido que em breve teria que se mudar.

No dia seguinte, estampava a manchete de um jornal a notícia de um dono de boate que havia sido assassinado sob pancadas nas imediações da Rua Augusta. Cogitavam um crime passional, mas ainda tudo era muito incerto.

Na cena do crime, uma camisa verde rasgada e chifres de touro estavam bordados.

Amigos do falecido diziam que vingariam a morte de seu colega. E que o crime teria sido cometido por um homossexual enrustido, com a ajuda de seu comparsa hétero, que perdeu a camisa na confusão.

Um defendia sua preferência sexual contra piadas machistas e de caras durões como o que estava apanhando; já o outro, descrente da vida, só dizia que não tinha nada a perder, pois naquela noite já não tinha mais nada que valesse a pena.

A partir daí, violências homofóbicas começaram a se instaurar naquela região e atrocidades entre semelhantes pareciam não causar mais efeito no mundo das diferenças já tão conturbado.

Talvez fosse o fim do amor universal. Era necessário reciclar-se.

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